Eles

02-03-2020

Separavam-nos alguns metros. Quando cheguei já lá estavam. Apercebi-me deles porque estavam sentados com folhas, canetas e papel. Entrei. Sentei-me. Esqueci-me de os voltar a ver. Até porque estavam algumas pessoas nesse mesmo espaço. Acompanhava-me um café. Uns auscultadores. O Tim Bernardes e o "Buraco da Consolação" que ouvia. E um livro para poder viajar. Para longe dali. Distraí-me no meio das pessoas que entravam e saíam. Gosto de estar no meio de pessoas que não conheço. Gosto de desconhecidos. De os olhar. Mas, nesse dia, só eles me prenderam a atenção. Bem. Voltando ao início. Passaram mais de duas horas quando me apercebi que já tinham passado mais de duas horas. O relógio é sempre amigo dos bons momentos. Já dos maus momentos.... Olhei pela sala, a passear-me pelos pensamentos. E a ver mais desconhecidos que tinham ocupado o lugar de outros desconhecidos. Eles ainda lá continuavam. Os dois. Via-os através de um vidro que nos separava. A alguns metros de distância. Continuavam lá. Eles. E as folhas, canetas e o papel. Agora, também, com livros. Não ouvia o que falavam. Estavam longe. Mas os seus gestos eram visíveis à distância. Ele, o mais novo, a tentar levantar-se da cadeira e a aguentar-se na mão que segurava a sua cabeça. Enquanto a outra mão segurava no lápis. Estão a imaginar? Ele, o pai, a gesticular com a mão e a apontar, com o seu indicador (o indicador parecia ganhar proporções de uma pessoa, claramente, enfurecida) para o livro do filho. Não os ouvia, mas bastava-me olhar para eles para perceber o que lhe poderia estar a dizer (ele, o pai): "Não sais daqui enquanto não acabares", "Quanto mais tempo demorares, mais tempo vais ficar aqui"... Ele, o mais novo, na iminência do choro. Não sei se chorava. Estava de costas para mim. Mas imagino que sim. Ele, o pai, prestes a chorar (mas, imagino, sem o fazer...por vergonha) por não conseguir ser o pai, naquele momento, que se exigia ser. Ou por reconhecer, nele, no filho, a sua própria história. E com medo de a voltar a repetir. Ele, o mais novo, a sentir que não estaria a conseguir que o seu pai tivesse orgulho nele. Ele, o pai, a sentir-se, naquele momento, tão impotente como o seu filho. Eles a sentir que estavam, ambos, a falhar. Foi assim que os imaginei. A certa altura, o pai olhava para o vazio, quase que a conter o desespero. Enquanto cruzava as mãos que seguravam o seu queixo. Ou a sua insegurança. Ele, o mais novo, a segurar a desilusão com a mão enquanto, a outra, se zangava com as letras e os números. Atenção: não me levem tão a sério. Estava a observar desconhecidos. E a imaginar a história deles. Desculpem-me se não foi bem assim que aconteceu. Bem... A certa altura, fiquei mesmo triste. [Reparei que não seria a única. Eram observados por outros]. Porque os senti, em igual proporção, a não querer desiludir quem gostam. A querer corresponder às expectativas que (imaginamos) termos de alcançar. Mas, ao mesmo tempo, a magoarem-se. Ele, o mais novo, não teria mais de oito anos. O mais crescido, o pai, pareceu-me, em alguns momentos, regressar às suas memórias mais antigas. À sua história. Não regressamos todos quando somos pais? E, naquele momento, já não era só o pai e o filho que ali estavam. Mas o pai que foi, um dia, filho. Já não era só o filho que ali estava. Mas o filho que desejava ser o filho que o pai queria que ele fosse. Já não era só o pai que ali estava [estou confusa, não estou? Entre ele, o pai, e ele, o filho...talvez seja esse mesmo o objectivo]. Não sei, juro, quem estava mais desesperado. Se pai. Se filho. Tive vontade de ir serenar o pai e dizer-lhe que não fazia mal se errassem. Ambos. Pelo contrário. Que não faria mal se o filho não quisesse estar mais de duas horas sentado a fazer os trabalhos. Pelo contrário. Não devia ter mais de oito anos, acreditem em mim. Às vezes pergunto-me por que razão corremos. Por que razão sentimos que somos o que mede uma nota. Pelos rankings? Pela expectativa (não sonhada, mas antes vivida com medo) do que imaginamos termos de ser? Mesmo com oito anos? Porque nos dizem que sermos inteligentes é trabalharmos muito e muito e muito e termos excelentes notas? [(atenção, exigirmos é bom. Ter boas notas é bom, permitam-me a redundância. Trabalhar é essencial. Mas a exigência que daí decorre, muitas vezes, é capaz de ter efeitos secundários severos, acreditem). Às vezes pergunto-me quem queremos nós, os adultos, ajudar. A eles, aos mais novos? Ou a nós mesmos? Quer dizer, à nossa própria história? Como se a quiséssemos reescrever. Agora, sem erros! (como se fosse possível!). Mesmo que, sem querer, a estejamos a reescrever da mesma forma. Seja pelo que exigimos, em demasia, para que não se volte a repetir. Seja pelo que permitimos, em demasia, para que não se volte a repetir. Querermos mais do que tivemos para eles, os mais novos, será, sempre, sinónimo de progresso. O problema é quando, na ânsia de tanto querermos compensar os erros que fomos sentindo em nós, nos esquecemos de permitir que os mais novos possam, igualmente, construir a sua própria história. Nos esquecemos de nos permitirmos errar. Sem culpas (a culpa? Acho que falarei dela num próximo dia!). E que, assim, fique a história deles, dos mais novos, fundamentalmente contaminada pela nossa. E, quando isso acontece, não há progresso.

In Folhas de papel

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