O aqui e o agora

05-01-2020
Ana Carolina Pereira - O aqui e o agora In Folhas de papel
Ana Carolina Pereira - O aqui e o agora In Folhas de papel

Não sei, mas...

-Precisa de ajuda? Qualquer coisa que precise, já sabe! Estamos com uma promoção até dia 6. Na compra de uma peça, tem 50% de desconto na segunda, dizia-me. - Não preciso, obrigada. Estou só a ver, respondi! O quê? A ver o quê? [...].

O João, 7 anos, dizia-me, a chorar, que não sabia para onde tinham ido os bichos-da-conta que ele tinha guardado no jardim da sua casa. Que os devia ter guardado melhor. Que poderia tê-los posto num local diferente. Perguntava-me se imaginava para onde poderiam ter ido. Onde estariam a viver, naquele momento. Não sei, mas...

- Afinal preciso, tentei dizer. - Precisa de ajuda? Qualquer coisa que precise, já sabe! Estamos com uma promoção. Na compra de uma peça, tem 50% de desconto na segunda, repetia para alguém. - Afinal preciso...Não sei, mas...

O que é viver no aqui e no agora? Ouço dizer que significa aproveitar o momento. Viver no presente. Sentirmos a respiração. O nosso corpo. Ter boas energias. Aceitar e meditar. Meditar e sentir. Conhecer-te a ti mesmo! Focar na respiração e não pensar em nada. Como se faz isso? (assumo a minha inveja!). Pensar em tudo, ao mesmo tempo. Admito o meu fascínio ateísta por estes conceitos e a minha ânsia (e respeito) de os compreender. Não sei, mas...por vezes, pergunto-me (e, claro, incluo-me) o que significa estar num processo de desenvolvimento pessoal. Não estaremos sempre? Mesmo quando estamos confusos. Perdidos. Em contramão com o que queremos? Ou achamos querer?

Não sei, mas...acho que a culpa é do Futuro. Essa pessoa (o Futuro) que nos fez crer que tínhamos de ser produtos estereotipados para sobreviver neste mundo incerto e volátil. (Aproveita o momento, não sabes o dia de amanhã, dizem-nos! Na compra de uma peça, tem 50% de desconto na segunda...). Que nos faz acreditar que somos nanopartículas de um nada igual ao nada do vizinho (que, ainda assim, nem sempre conhecemos!). Que tínhamos de ser iguais. Que tínhamos de gostar de qualquer coisa já que é trendy. Porquê? Que tínhamos de correr para sermos bem-sucedidos! Em quê? Que só passávamos a existir caso fôssemos empreendedores e optimistas e transportássemos boas energias e fizéssemos desenvolvimento pessoal e passássemos a falar em mindset e fôssemos motivacionais e... . Que basta acreditar e tudo acontece (pausa: eu também acredito na Física que nos liga uns aos outros ou que, pelo contrário, nos separa dos que nos "fazem mal"). Que somos os likes que temos. Que temos de ser especiais, mesmo quando ser especial é ser parecido ao que o outro, que também quer ser especial, é. Que nos roubou o acesso a líderes políticos emblemáticos. que discutiam causas. E nos deu a Cambridge Analytica. Nada de inovador, ainda que, agora, com uma subtileza de alcance praticamente impercetível, para nós, em tempo real. Recordam-se dos discursos propagandísticos e inflamados do líder do Partido Nacional-Socialista alemão, Hitler? Que nos deu, o Futuro, o "feed" dos nossos interesses, mesmo que não nos conheçam. Será que há algoritmos que nos conhecem melhor do que as pessoas que nos rodeiam? Que nos fez crer que teríamos de ser produtos. Que nos atirou para uma tamanha crença na omnipotência da nossa singularidade que nos esquecemos de nós.

Não sei, mas...viver o presente não será, no fundo, viver? Por vezes, pergunto-me, se não estaremos, nalguns momentos, um pouco anestesiados nesta sofreguidão de nos querermos encontrar especiais, como se nos esquecêssemos que o somos, na verdade. Eu gosto do futuro. Gosto de gostar da ideia de podermos imaginar. Sonhar. De saber que o futuro, ou seja, o hoje tem pessoas absolutamente especiais. Que fazem, feitos absolutamente homéricos. Não vos falei do João? Eu gosto de ter memórias. Imagino-me um girassol. A direcionar-me para o Futuro. Ou para os estímulos luminosos. Porque as plantas terão "memória" (os mais entendidos falarão em fototropismo ou fototaxia). O João também. Ele pensa no futuro. Coloca hipóteses. Para onde terão ido os bichos-da-conta? O João medita. Ficou muito triste por os ter perdido. Os seus amigos. Não será, ele, o João, uma metáfora do futuro? Ele não fala em mindset, mas em perspectiva. Tudo será uma questão de perspectiva, já pensaram? Para onde terão ido? O João vive. Pelo espanto que se permite sentir de cada vez que observa os outros? Nem que seja um bicho-da-conta? O João cuida do Futuro: para onde terão ido?

O aqui e o agora In Folhas de papel
Ana Carolina Pereira

Photo by Jeffrey Czum from Pexels 

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